Porque a vida que levamos faz isso com a gente!

5.06.2011

"Com pedaços de mim eu monto um ser atônito" - Manoel de Barros

Acho que o que mais me diverte em mim mesmo é minha falta de memória. Esqueço as coisas com a maior facilidade.
 
Normalmente isso é visto como algo prejudicial, como se houvesse uma certa infidelidade em nossa mente. Um descompromisso com o percebido.
 
Cá por mim não penso assim. Sou meio que nem peixe que redescobre o aquário a cada volta que dá. Vivo reencontrando coisas que admiro. Não que encontre agora, ande um pouco e encontre de novo. Reencontro pois esqueço. Esqueço e quando me vejo perante, admiro novamente. Normalmente essa segunda admiração me faz recordar do primeiro encontro e aí, à alegria da admiração, do contemplar algo que sinto compor comigo, soma-se uma segunda alegria, a de saber que apesar de esquecido, meu admirar é meu mesmo. Não é uma dimensão pontual e recortada. É uma sintonia de mim comigo mesmo.
 
Falo isso porque ontem lembrei que poesia é uma coisa que desperta em mim sentimentos muito raros. Ontem me reencontrei com a poesia através de Manoel de Barros. Sua grandiosidade de observar pequenos movimentos, de torcer a palavra e com ela o mundo.
 
Poesia é uma grande inspiração para que possamos lembrar sempre que o mundo que vemos ou é criado por nós a cada momento ou é aceito por nós a cada volta. O primeiro mundo envolve nosso ambiente interno com nossa fauna e flora internas produzindo sentidos e afectos e vai sempre, necessáriamente produzir uma diferenciação deste mundo que entra em nós por nossos sentidos. Podendo ou não produzir novas composições externas, perceptíveis por aqueles que não compartilham este mesmo afecto. A essência do artista é essa, produzir e reproduzir novas composições e permitir que novos "afectos e perceptos" possam ser criados nos observadores. A segunda forma de ver o mundo implica em uma tentativa de replicação do mundo dito concreto, com seus processos e métodos, resulta numa tentativa de continuidade, uma repetição em preto e branco, incompleta. "As coisas não podem ser e não ser a mesma coisa no mesmo momento". Essas duas posições não são necessariamente antitéticas ou contraditórias o tempo todo, uma vez que a cada momento nos é dada escolher entre um mundo ou meu mundo.
 
Juntando duas formas de arte que considero como fundamentais para minha composição interna, cinema e poesia, tive um reencontro com a poesia. Não que tenha havido um afastamento. Acho sempre que tem um Leminski sugerindo hai kais ao invés de um anjinho ou diabinho no meu ombro. Óbvio que nem sempre damos atenção à um ou outro e tampouco eu à esse diabanjinho curitibano. É mais como um: "É por isso que eu gosto de tal coisa", uma reverberação. E não é só no sentido da arte poética, por suas regras e formas. É como se desse uma concomitância de pensamento em mim e com a obra. Uma plenitude de sentido que é só meu. Eu que vejo, reconheço na obra um pedaço de mim.
E quando esqueço e reencontro, posso sentir que não só reconheço um pedaço de mim ali, mas que ali já o havia antes - isso já passou por mim e produzindo um novo clarão de admirância, encontrou outro que ali cochilava.
 
 
 
O olho vê,
a lembrança revê,
e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.
 
- Manoel de Barros -
 
 
Assistindo e recomendando: Só dez por cento é mentira - a desbiografia oficial de Manoel de Barros. - de Pedro Cezar
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