Porque a vida que levamos faz isso com a gente!

6.13.2005

Anatomia de um comportamento

Ele acordou com o poderoso som de gotas de água caindo na pia, abriu um olho após o outro, adaptando sua vista embaçada à luz que inundava o quarto. Deviam ser mais de onze horas. As gotas continuavam a cair com um som forte, mesmo com a cozinha se localizando no outro lado do apartamento. Algo havia de errado, não deveria estar ouvindo aquele som. Em meio a algazarra mental que seu despertar o havia lançado, pensou que devia averiguar o que ocorria. O som continuava.

Começou a animar seu membro paralisados pela atuação de Morfeu. Sem se recordar da noite anterior, fez um movimento acelerado para levantar da cama. O som aumentou enquanto se deu conta de que antes de vir da cozinha, o som vinha de dentro de sua cabeça. A percepção de tal fato veio acompanhada de uma forte dor se expandindo por seu crânio e a lembrança enfadonha e retalhada da noite anterior. Caiu de volta na cama sob o apelo de seu corpo fatigado. O som continuava.

A volta à posição horizontal, longe de dar-lhe satisfação, despertou novas sensações. Dúvidas, questionamentos. Olhou em volta e certificou-se que estava em casa. O sono voltou a corteja-lo e seu corpo, feliz, cedeu à corte e esvaiu sua consciência. Um repouso mais tranqüilo que o anterior tomou conta. O som amenizou até que se perdeu na distância entre a vigília e o sonho.

Acordou novamente horas mais tarde, sentindo seu corpo mais alerta e mais consciente. Consciente da dor em sua cabeça e do mal estar em seu corpo. A noite anterior foi reconstruída, mesmo que de forma meramente especulativa, uma vez que a memória fatual havia sido absorvida pelo álcool da mesma forma que ele havia absorvido este. Lembrou de ter ido ao encontro de seus mais caros amigos, ambos pertencentes a uma confraria que mantinha ativa a serpentina de cerveja do botequim adotado como sede da Cáfila, como se auto- intitulavam os membros da dita Confraria, conhecidos por sua habilidade de beber litros e litros de cerveja, diluídos em longas horas de conversas.

Lembrou-se de quão comemorada foi a sua chegada no bar, uma vez que se atrasara. Seus amigos já estavam a pouco mais de uma hora e sua função etílica já vinha sendo cumprida desde o momento de sua chegada à dita taverna. Comentários bem humorados sobre a natureza de seu atraso circularam a mesa, passando ligeiramente pelo balcão onde seu melhor amigo, o dono do bar, capitaneava as piadas especulando sobre o que seria mais importante que sua pontualidade. Sentou-se à mesa, serviu-se de um copo de cerveja e pediu um traçado – “pra não pegar resfriado” – sorveu a mistura de licor de mel e cachaça e virou o primeiro copo de cerveja, levantando a mão para o alto e fingindo ter um revolver na mão fez o clássico movimento de “foi dada a largada”.

Horas se passaram entre boas conversas sobre atualidades, futebol e mulheres. As garrafas de cerveja se acumulavam de forma geométrica, obedecendo à proporção do triângulo inicial, um perfeito triângulo equilátero com a medida lateral de sete garrafas. Óbvio que ao fechar o triângulo, um engradado perfeito, novo desenho era iniciado.

Foi na confecção do segundo triângulo que sua memória começou a ratear. Já não lembrava se o terceiro traçado já tinha rolado. Fato foi que conseguiu localizar o momento de sua queda exatamente na hora que alguém sugeriu uma rodada de Martini, sob o argumento de que algo doce faria bem para aumentar a glicose. Fato foi que daí em diante sua memória perde consistência e sua moral começa a falhar.

Lembra que de lá foram para outros lugares, uma longa noite, uma dança em cima de uma mesa de bar, princípio de strip, umas tantas cantadas mal formuladas e mal sucedidas, alguém sentido-se ofendido por alguma graça falada imprudentemente, buracos na memória, flashs estranhos. Dor, muita dor de cabeça. Nesse momento, sente a síntese de seu drama, a origem de seu mal, um mal, ao contrário do que se pode pensar a princípio. Sua dor não é causada pelo álcool, pelas companhias ou pelos tortuosos caminhos da noite. Seu mal é moral.

Prometendo-se nunca mais repetir a dose, se desligar da Cáfila, adorada confraria que ajudou a fundar, nunca mais voltar ao bar, romper de vez seu relacionamento com o dono do estabelecimento e adotar uma política de preservação do meio ambiente de seu organismo. Levanta-se da cama, arrasta-se até o banheiro. Num movimento de mestre, abraça aquela que pode compreende-lo e receber suas mazelas. Sentindo-se melhor, levanta-se, lava o rosto e se olha no espelho, com a sensação de desprezo daquele que se sente tendo incorrido no maior dos pecados e nem mesmo lembrar qual foi! No ápice de sua angústia, profere o fatídico juramento; nunca mais bebo assim. As gotas de água que retumbavam em sua cabeça continuavam, porém já havia se apercebido que não eram originárias da pia, senão de sua própria pulsação sendo sentida na sensível cabeça.

“Nunca mais bebo desse jeito” – Diz, manifestando o primeiro som do dia. De forma gutural e pausada, sente-se reconfortado pela decisão e tranqüilizado por saber que não mais passará por isso.

De repente, outro som se soma ao retumbante coração em sua cabeça, um som estridente, alto, que imediatamente localiza como sendo exterior à sua caixa craniana. Telefone, conclui dolorosamente. Arrasta-se e lentamente atende e profere o segundo som do dia: Alô.

Do outro lado, uma voz conhecida, algum dos camêlos da Cáfila, dizendo que a Confraria de tão animada com o sucesso da noite anterior e sobretudo com o espírito altivo de nosso baleado personagem, resolveu marcar reunião extraordinária para repetir a dose.

Desliga o telefone. Entre o desespero e a euforia se arrasta até a cozinha, localiza na estante o analgésico, com um copo d´água engole o comprimido, volta ao banheiro, toma um banho, se veste e vai de encontro ao bar, cumprir seu destino junto à Cáfila. O sol se põe em algumas dezenas de minutos. Mais uma noite....