Porque a vida que levamos faz isso com a gente!

1.25.2007

O peso mais pesado

“Moro em minha própria casa,

Nunca imitei à ninguém,

E rio de todos os mestres,

Que nunca riram de si”



Como já foi dito anteriormente, o Eterno retorno de Nietzsche consiste em um dos conceitos mais obscuros presentes na obra do filósofo prussiano; tanto por sua natureza complexa quanto pelo escasso material deixado por ele aclarando o assunto. Sua principal referência pode ser encontrada em A Gaia Ciência, no aforismo 341, onde coloca, em seu tradicional lirismo, exposta a essência do conceito:”E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!". Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: "Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?" pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?" A partir deste aforismo pretendo expôr alguns aspectos que me saltaram aos olhos de forma à me auxiliar na compreensão ou colocar obstáculos à mesma desviando meus olhos do cominho proposto pelo professor da Basiléia.

Antes de mais nada, percebi que além da exposição do conceito, Nietzsche versa sobre quais atitudes seriam possíveis perante a ciência de tão angustiante – ou reconfortante- idéia. Primeiramente vou me ater a isso, as possibilidades apresentadas como possíveis perante este anúncio feito pelo demônio-deus. A do homem que renega e do homem que abraça. O que separa a ambos? Que tamanha diferença compartilham para que tenham tal abismo entre si? Porém, antes de mais nada, vale lembrar que tal qual qualquer filósofo anterior ou posterior, Nietzsche busca à Verdade e somente à ela jura lealdade, mostrando claramente, perante os dois possíveis caminhos, qual é aquele que conduz o homem em direção à ela e portanto à sua felicidade e realização plenas.

Gostaria de iniciar lembrando que é prudente localizar o filósofo prussiano como, antes de mais nada, um defensor do movimento da vida, um adorador do sentido trágico da existência, sentido este que longe de buscar ditar regras ao eterno devir de todas as coisas, caminha a seu lado, fazendo-se à altura de ser considerado um amante da vida tal como ela. Sua antítese, revelada no fragmento, porta-se como um legislador, fracassado, um frustrado herdeiro da cristandade, desejoso e idealizador da satisfação que não lhe é assegurada nem garantida, nesta ou em qualquer outra vida que por ventura possa-se vir a ter, creia-se ou não.

Nietzsche leva às últimas consequências a idéia de que a vida não assina contratos e não aceita o jugo imposto por quem quer que seja. E quem irá legislar por cima da vida? Atelie de nossa existência, onde longe de sermos os artistas, nos realizamos sendo a obra da construção do eterno pulsar da existência que se desfralda perante nós e nos leva, tal qual cavaleiro que não usa rédeas, mas do contrário aceita ser conduzido para o destino que, inevitável, torna-se prazeiroso ao ser visto como amante e mestre.

Desta forma o autor demonstra as duas possíveis reações perante a revelação do eterno retorno de todas as dores e todos os prazeres. A primeira, herdeira da tradição legisladora da conceituação ocidental, com as bençãos de Paulo de Tarso, retrata o peso da frustração perante a falta de controle imanente da forma que o desenrolar da existência nos arrasta, de tal forma acorrentado pelo pescoço em seu fluxo, que jamais permite que haja controle; a asfixia da revelação de nossa insignificância perante o brotar, a força constante que arrasta o homem e não permite jamais que nos ergamos para respirar e ver a luz de platônica, que deveria nos aclarar e desvendar o mundo tal qual ele é. Então, com isso mostra o amigo demônio que tal luz, longe de nos dar a segurança desejada, o conforto e a linha reta, sequer existe. Por tal razão amaldiçoa o demônio, sua verdade e quiçá o autor que redige linhas que contém tamanho desvio. Maldita a pena que redigiu estas linhas e que fazem seus dentes rangerem e o edifício da mecanicidade e do desfrutar do mundo ruir, vindo por terra ao som filarmônico da melodia da verdade da existência.

De outra feita, Nietzsche nos apresenta àquele que viveu “alguma vez um instante descomunal” e, inebriado por tamanha experiência, reconhece na verdade dita pelo amigo demônio, tornado em deus, a medida do desenrolar da existência e da falta de desejo e de possibilidade de que tudo venha a ser de outra forma, se deita ao leito trágico da vida e se faz desta seu amante, companheiro e pleno vontade que ela seja tal como é, hoje e sempre, sem que haja morte possível que o separe, nem felicidade maior que o complete, pois que a realidade do mundo tal como ele é se desfralda perante seus olhos e ouvidos e o preenche de saber, tornando-o filósofo e homem, vida e morte, amor e ódio, pleno e satisfeito com seu amor pelo saber. E há algo mais pleno de si que o filósofo que, ouvindo a verdade sendo dita por aquele que dela compartilha e conhece, o demônio deus do saber, não se preencha e deseje que ela seja eterna assim como a existência que leva?

Sinto no fundo da garganta ao ler o aforismo 341, mais do que a exposição de um conceito acerca do funcionamento do mundo, da impossibilidade da geração de novas experiências, ou da criação de novas vidas e situações, assunto por demais obscuro e que merece uma apreciação de melhores do que eu para que este não seja tal como mulher madura cortejada por meninos. Reconheço ao ler o aforismo, nesse momento, a minha impossibilidade, ou talvez a imposibilidade eterna da compreensão dos mecanismos da existência. E talvez por isso o velho mestre não se prolongue, ou torne mais claro, em seu mais célebre aforismo, “O mais pesado dos pesos” sobre os meandros do conceito que apresenta. Sinto a exibição de mais uma apresentação daquilo que o filósofo considera como sendo a postura necessária não somente para o filósofo, mas para o homem em geral. Uma postura que traga ao homem uma possibilidade de felicidade, de realização perante ao mundo enquanto parte do mesmo, como ser que compartilha e reconhece que faz do mundo que o cerca, como parte integrante e não como figura arrogante que pretende dominar e escravizar este mundo para que satisfaça a sua necessidade de sobrevivência, de controle ou de poder.

O poder do homem, representado pela busca do filósofo pela verdade, reside na capacidade, ou talvez na possibilidade de, reconhecer a vida tal como ela se mostra e, na anuência destes processos, fazer-se digno de agir de acordo com isso e realizar plenamente a sua própria existência. De novo, novamente, incansável e apaixonadamente, desejoso de estar no mundo e dele sentir o devir e ocaso de tudo, no eterno ballet de “cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande” feliz de, conhecendo o mundo como ser inserido neste, se faz digno e feliz de poder tal como não posso, agora, menino, decifrar o mistério do Eterno Retorno, cortejar a existência como seu amante fiel, maduro e ciente de tudo o que está em jogo e aceitando em seu leito tudo aquilo que a vida, amada, tem para nos oferecer.

.:: Rodrigo Sinoti ::.

2 Comments:

Blogger Fabio Rocha said...

Putz, ficou muito maneiro! :) Parabéns!! Me inspira a tentar usar uma linguagem mais poética e livre nos trabalhos acadêmicos. :)

quinta-feira, janeiro 25, 2007 10:14:00 AM

 
Blogger Adriano de F. Trindade said...

É interessante o efeito de uma simplicidade esmagadora sobre uma teoria intrincada porém pré-estabelecida. Para o cristão que acredita piamente nos mecanismos do "céu" e "inferno", bem como no seu método de seleção, e trocar todas essas engrenagens celestiais por um simples processo repetitivo, muitas vezes destrói o sentido de sua vida. Mas é um mal necessário, pois dessa destruição pode surgir uma nova consciência, e esta nova consciência será mais simpática para a segunda reação que o demônio recebeu. Tá muito bom seu texto, viu, fio? Tá fora de série. Temos que tomar mais cervejas uma hora dessas!!! Abração!!

domingo, fevereiro 11, 2007 10:19:00 PM

 

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