Porque a vida que levamos faz isso com a gente!

1.25.2007

Cartola, Nietszche e o sentido trágico da existência.

Acontece


Esquece o nosso amor,
vê se esquece.
Porque tudo no mundo acontece

E acontece que eu já não sei mais amar.
Vai chorar, vai sofrer, e você não merece,
Mas isso acontece.

Acontece que o meu coração ficou frio
E o nosso ninho de amor está vazio.

Se eu ainda pudesse fingir que te amo,
Ah, se eu pudesse
Mas não quero, não devo fazê-lo,
Isso não acontece.

Cartola





Este ensaio não visa de forma alguma uma análise da obra de Cartola, nem sequer de uma música, seja pela perspectiva do autor mesmo ou de algum comentarista. Nem mesmo sei ao certo se presta para uma análise, comentário ou aclaramento, mesmo que superficial, acerca de conceitos expressos e advindos da filosofia de Friederich Nietzsche ou de qualquer outro filósofo prévio ou posterior ao Professor da Basiléia. Busca sim, através de uma música de Angenor de Oliveira, vulgo Cartola, de nome Acontece, associadas à pensamentos em mim produzidos graças ao parco estudo da obra de Nietzsche e alguns outros autores da genealogia filosófica que nos precede enquanto amantes do saber, apresentar um ensaio cuja inserção conceitual prefiro deixar a cargo daqueles que hão de julgá-lo, os eventuais leitores, posto que a eles pertence o que quer que seja produzido em suas mentes quando desta leitura. Trago aqui, somente, os pensamentos produzidos em mim pela afecção conjunta da leitura e da apreciação musical dos referidos autores, reivindicando para mim as associações criadas entre a canção e a filosofia, eximindo o músico em questão de qualquer tentativa de inserir em sua obra qualquer conceito filosófico formal. O mesmo já não posso fazer com relação a Nietzsche, uma vez que conceitos estéticos por ele elaborados foram, senão a coluna cervical daquilo que me leva a produzir esse ensaio, pelo menos o trampolim através do qual me lanço para poder compartilhar parte de minha subjetividade e compreensão do real. Meu olhar, produtor de interjeições, associações, relações e críticas, trouxe-me estes pensamentos e, tal como o devir, o brotamento necessário e incessante da totalidade do real, essência trágica do mesmo, de que pretendo falar aqui, trago a necessidade pungente da produção deste ensaio. Que de início, por sua temática já é deveras complexo devido aos elementos que se mesclam para dar face às impressões que aqui trago, a música, o samba em especial, posto que este gênero é produtor em mim de um sentimento mui especial, e a filosofia do já referido autor, controversa por natureza. Porém há, nesta mescla, um fator que se não foi por mim deliberadamente deixado de lado, gentilmente pedi licença para não me concentrar nele uma vez que sua natureza é por demais complexa e geradora de sentidos que não são aqueles que aos quais me foco aqui. Me refiro ao amor, indiscutivelmente um tema da maior importância, mas que não me sinto aqui, filosoficamente, habilitado para construir uma articulação satisfatória, ao meu ver, junto com a temática principal deste ensaio, a saber o sentido trágico da existência e a postura do homem perante tal. Por momentos temi que estas linhas soassem frias por utilizar uma obra que, mesmo trazendo em si, em minha percepção, um olhar trágico sobre o mundo, trás também e em uma posição infinitamente superior o amor como insígnia, mesmo ao se referir ao término do mesmo. O músico nos dá uma mostra de um amor que se finda e ainda assim permanece, transformado sim, mas ausente nunca. E esta permanência, percebo como sendo não uma amostra de um comportamento trágico mas a própria essência do trágico enquanto persistência, necessidade e eterno devir.

A emergência do real, seu eterno brotamento e acontecimento são constituintes do caráter trágico da existência e, porque não dizê-lo, talvez até mesmo constituam a sua essência. O devir enquanto eterno brotar, são perceptíveis na vida do homem através da seqüência incessante dos acontecimentos, encadeados ou não, súbitos ou esperados, que ocorrem no decorrer da duração de sua vida. Tudo, no mundo, acontece. A inevitabilidade desse fato que muito angustia o homem leva-o à busca do controle desse brotamento, seja pela força da ciência, que desde o seu surgimento se propõe a buscar o domínio dessa fluência, buscando verdades últimas e únicas que contém em si a idéia de domínio desse fluxo, impossível na prática e em essência. O mensurar, postular, legislar ou, de forma mais palatável, porém igualmente falaciosa, o conhecer o mundo, propõe que o homem possa ter maior domínio, ou menor afecção causada pela inevitabilidade dos acontecimentos que o atormentam incessantemente. Pois o homem busca, acima de todas as coisas, não sofrer e por isso, todas as manobras necessárias para mitigar a dor e sofrimento são tidas como válidas e até mesmo como possuidoras de um valor de verdade que, senão falso, é pelo menos tendencioso e por isso não fala de forma alguma do mundo enquanto tal, mas sim da perspectiva do homem enquanto ser temeroso e fraco por ser plenamente dessintonizado e desconectado desse mundo que busca conhecer.

O conceito estético da concepção “trágica” de mundo, como diz Nietzsche, consiste na “afirmação da vida até em seus problemas mais árduos e duros; a vontade de viver, regozijando-se no sacrifício de nossos tipos mais elevados ... O fim da tragédia não é desembaraçar-se do medo e da Piedade… mas realizar-se em si mesmo, acima do medo e da piedade, é a eterna alegria que leva em si o júbilo do aniquilamento.” Desta forma, a postura trágica deve sempre contemplar os acontecimentos da forma que ocorrem e produzir respostas à altura do mesmo, independente de sentimentos de piedade e morais no sentido de condescendência para com os outros. Há de existir o total respeito à forma com que cada coisa acontece. Em termos dos nossos tempos, a título de exemplo, a postura perante o amor, valor tido em mais alta conta e muitas vezes como valor supremo sendo, neste caso, inteiramente contrário ao sentido trágico, pode parecer contraditória se seu fim, o amor que se acaba, for enfrentada com a tranquilidade e serenidade de alguém que simplesmente constata algo que se mostra, um dado, um acontecimento dentre tantos outros ocorrentes em nossa vida, ainda que contenha em si, como Cartola tão brilhantemente nos presenteia, um amor transformado, um carinho que permance e com isso mostra um exemplo da dinâmica da vida em se manter enquanto princípio de transformação, já não mais amor, em sua forma tradicional. Portanto, simplemente acontece que já não mais se ama, finda-se um sentimento da mesma forma e com a mesma naturalidade que se finda uma vida, uma fala ou uma história. De um amor que finda e da forma que um dos amantes se coloca perante isso é que desejo retirar um exemplo de um modo de vida trágico que, ciente da dor, do desprazer e até mesmo da falta de causalidade, mantém-se fiel ao sentimento, ou à transformação deste e nisso, nesse acontecimento, pauta suas ações, buscando estar de acordo com a vida tal qual ela se mostra, e é. Mesmo da dor que se prevém pelo fim de um amor, a inevitabilidade do terminar, o ocaso da paixão se impõe como fator determinante evidenciando a fidelidade maior do amante; o sentimento e não a pessoa amada. Pois quem ama, ama o amar que sente pela pessoa, e é isso que atribui o valor tão importante à pessoa amada, ela é o alvo do sentimento, logo este concede àquela o valor que possui. De outra forma, o não respeito ao fim do sentimento pode fazer com que o mesmo, outrora prazeiroso, anseoso pela eternidade, com a mesma legitimidade e necessidade torne-se vicioso e desagradável, inexistente ou simplesmente saudoso, tornando se desconectado, um rio sem mar.

A fidelidade do homem para consigo é determinante na estética trágica. Nada pode, deve ou ocorrerá que não esteja em sintonia com o aquele que sente. Não pode, não quer e não irá o homem trágico comportar uma existência que não satisfaça aquilo que a vida trás ao acontecimento. É sempre a vontade que conduz o homem, seja ele trágico ou não. Ao homem não é dado fazer o que não quer, seja qual for o grau de escolha que tenha, que seja mais ou menos evidente, sempre há a escolha. O que escolher, como conduzir suas ações, sempre foi assunto em voga, seja naqueles que crêem na estaticidade da existência, seja naqueles que ouvindo ao lógos antes de si mesmo, ou seja, estando em sintonia com a emergência e necessidade de tudo que vem a ser. O que e como escolher sempre foram preocupações vivas no homem. Aquele que sabe ouvir, não às morais do homem, escravas de sua necessidade de controle e sobrevivência, mas, como disse o dualista, “ao lógos, que diz que tudo é um”, sabe viver de acordo com o infindável brotar da existência e se faz amante e cúmplice deste brotamento, não permitindo a inverdade de um sentimento que não tem espaço, que não se faz vontade suficiente para conquistar seu lugar no tecido existencial comum. Mesmo que o corte, o impedimento de tal coisa produza dor, sofrimento, que são, em última análise, inerentes à existência. Diz para si: “Se ainda pudesse fingir que te amo. Ah se eu pudesse. Mas não quero, não posso fazê-lo. Isso não acontece.” Deseja dizer que ama porquê já amou um dia, porém não quer dizê-lo porquê já não ama mais e não o pode por que o acontecimento desta inverdade não vem a ser.

Não há no sentido trágico da vida espaço nem para a impedosa caridade cristã nem para o paralizado sentido de verdade, sintoma de decadência, desejo de planificação e de satisfação do mediano e do comum. O trágico da existência se mostra como força, como emergência e como necessidade. É sábio reconhecer isso e perigoso não compreendê-lo, sobretudo quando vivemos sob a égide da moral cristã que arrasta o homem para a piedade porém não o levanta para a felicidade. Que permite o sofrimento como forma de purificação, quando esta só é possível quando há junto de si sentido, fidelidade e compreensão do homem com o mundo que se desfralda diante de si.



.::Rodrigo Sinoti::.